O divórcio decorrente da pandemia,
A procura por divórcio tem aumentado durante o período de isolamento social provocado pela pandemia da covid-19. Segundo a advogada da área de Família e Sucessões, Aline Angel Cordeiro, o convívio intenso em virtude da quarentena tem sobrecarregado física e emocionalmente as famílias brasileiras.
“O que não me contam eu escuto atrás da porta”. Dalton Trevisan
O convívio intenso entre casais e demais relações familiares, por conta da pandemia, somado ao isolamento social, tem gerado conflitos semelhantes aos dos contos romancistas:
Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.
Como num conto de Dalton Trevisan, é possível verificar que, em torno de 70% dos divórcios vem sendo iniciados pelas mulheres que, em razão da tripla jornada, ocasionada pela pandemia, estão optando por dissolver a união com seus parceiros.
O isolamento social acirrou os conflitos nas relações. Se antes da pandemia o casal normalmente só se encontrava em casa para o descanso e lazer, hoje muitos lares estão desarranjados em razão de um desemprego, da perda de um ente querido, da sobrecarga das mulheres com o cuidado do lar e dos filhos, situações psicológicas de estresse e depressão, demonstrando que as angústias e dores exigem mais compreensão e compartilhamento entre as partes. E se não há esforço entre o casal, não há motivo para a permanência da união.
Assim, estes conflitos desencadeiam em inúmeros pedidos de divórcios e cuja maioria dos pedidos, segundo as pesquisas, são feitos pelas mulheres, sobretudo pela desigual divisão sexual do trabalho.
Nada obstante as mudanças de paradigmas, este relaxamento das fronteiras entre o mundo produtivo (homens) e reprodutivo (mulheres) tem contribuído para que a participação do casal, num dado momento da relação, tenha de ser revisto e ressignificado: a uma porque ainda que as mulheres assumam sua participação no mundo produtivo, suas responsabilidades privadas femininas não são revistas, ocasionando conflitos de valores e de comunicação nas relações e, a duas porque as relações sociais entre os sexos se apresentam de forma desigual, hierarquizada, marcada pela exploração e opressão de um sexo em contraponto à supremacia do outro. Adensadas ainda mais pelo momento crítico de pandemia no mundo e no país.
Com isso é possível observar que as pessoas tem optado por permanecerem sozinhas, considerando que não estão prontas para assumirem maiores responsabilidades.
Assim, se antes da pandemia as relações estavam permeabilizadas por facilidades e conforto, com o surgimento da pandemia as relações se evidenciaram e trouxeram a necessidade de ressignificação, fortalecimento e superação.
Relações sociais que antes pareciam satisfatórias, em tempos de pandemia, podem se descobrirem como superficiais, frágeis, fugazes e maleáveis e, somadas ao excessivo uso das redes sociais, confirmam a teoria da modernidade líquida, conceito este criado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman:
“As redes sociais e a internet serviram de instrumento para a intensificação do que Bauman chamou de amor líquido: a relação pseudoamorosa da modernidade líquida. Não se procura, como na modernidade sólida, uma companhia afetiva e amorosa como era na modernidade sólida, mas se procura uma conexão (que pode ser sexual ou não, sendo que a não sexual substitui o que era a amizade) que resulte em prazer para o indivíduo. O imperativo da modernidade líquida é a busca por prazer a qualquer custo, mesmo que utilizando pessoas como objetos. Aliás, na modernidade líquida, o sujeito torna-se objeto.
As conexões estabelecidas entre pessoas são laços banais e eventuais. As pessoas buscam um número grande de conexões, pois isso se tornou motivo de ostentação. Mais parceiros e parceiras sexuais, mais “amigos” (que, na verdade, não passam, na maioria dos casos, de colegas ou conhecidos), pois quanto mais conexões, mais célebre a pessoa é considerada. Basta fazer uma breve análise das relações sociais em redes sociais como o Facebook: quanto mais “amigos” (que, na verdade, são apenas contatos virtuais) a pessoa tem, mais requisitada ela se torna.
O sexo também se reduziu a mero objeto de prazer. É verdade que, enquanto impulso fisiológico do corpo, o lado animal do ser humano busca o sexo pelo prazer, e não pela reprodução em si. O prazer é uma isca da natureza para atrair o animal para a relação sexual, pois, assim, a natureza consegue que os animais se reproduzam e as espécies sejam mantidas.
O sexo, para as sociedades humanas e na modernidade sólida, deixou de ser somente instrumento de prazer e foi considerado mais que somente meio de reprodução. O sexo passou a ser visto como compartilhamento de emoções, de amor, símbolo de confiança entre duas pessoas. Na modernidade líquida, o sexo é mero instrumento de prazer e não deve ser medido qualitativamente, mas quantitativamente: quanto mais frequente e com o maior número de pessoas possíveis, melhor. Quanto menor o vínculo entre parceiros sexuais, melhor.” (fonte: https://mundoeducacao.uol.com.br/sociologia/modernidade-liquida.htm
Assim, as relações somente se mantêm quando prazerosas e úteis aos cônjuges e a sua dissolução e alteração no estado familiar oriundo do divórcio deve ser usado como remédio para a solução entre o casal e a família; e não encarado como sanção ou “pena” para o conflito conjugal, considerando que o bem estar dos cônjuges e envolvidos, principalmente dos filhos menores, quando houver, deve ser priorizado.
Assim, o direito de divorciar-se é um direito fundamental e sua origem trata da dignidade da pessoa humana, pois, ainda que as relações sociais venham se modificando com o tempo, seu resultado impõe a construção de um direito moderno e funcional, trazendo o divórcio como um meio de se preservar a essencialidade humana e atualmente com maior agilidade, pois a Emenda Constitucional 66/2010 não exige mais a separação judicial prévia.
Links Relacionados
- Divórcio – Divórcio
- Direito de família – Direito de Família
Deixe um comentário